Os escritores sempre foram cronistas do seu tempo, capturando e compartilhando as nuances do cotidiano e da realidade que os cercava. Mas, como fazer isso em tempos onde a distorção e o silenciamentos de vozes cortam a realidade que escrevemos?
Na madrugada de 31 de março para 1 de abril de 1964, o presidente democraticamente eleito João Goulart foi destituído da presidência em um golpe articulado pelos militares em conluio com altos escalões do governo dos Estados Unidos. Sob o pretexto de restaurar a ordem e conter o avanço do comunismo, o que deveria ser um governo provisório rapidamente se transformou em vinte e um anos de uma ditadura brutal. Durante esse período sombrio, os direitos políticos foram suprimidos, a imprensa, jornalistas e escritores foram perseguidos e submetidos à censura sistemática. O país mergulhou em um período de repressão, violência e arbitrariedade, deixando marcas profundas na sociedade brasileira que ecoam até os dias de hoje.
Os meios de comunicação foram os primeiros a serem fortemente perseguidos pelo regime. Após a instauração do AI-5 (Ato Institucional Número 5). Em 1975, O Jornal Folha da Manhã, teve um episódio de censura terminou provocando a demissão de toda a redação do jornal, inclusive de seu diretor. O Jornalista, Caco Barcellos, escreveu uma matéria sobre a violência do estado contra os civis, era um jogo de futebol dentro de uma cela, onde a bola era o corpo dos presos, ele conta em uma entrevista com o Dr.Dráuzio Varela, que o secretário de segurança daquela época pediu a sua demissão, mas que o editor não concordava, pois a matéria estava correta e isso foi escalando, até que vinte e dois profissionais da comunicação do jornal, pedisse demissão em protesto pela represália por se falar o fato ocorrido.
Músicos também foram perseguidos dentro desse período nefasto da nossa história recente. No início da década de 1970, Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro resumem a indignação compartilhada pelos compositores brasileiros com relação à censura às suas obras (“Você corta um verso, eu escrevo outro”) e enfrentam a ditadura (“Que medo você tem de nós, olha aí!”), com a canção “Pesadelo”, lançada pelo MPB-4 no LP “Cicatrizes”
(Phonogram/1972).
O mercado editorial de livros sofreu grandes mudanças após 1964. Do ponto de vista econômico, a produção de livros atravessou forte crescimento, houve uma importante modernização técnica e o estímulo à concentração do mercado nas mãos de grandes grupos editoriais, especialmente beneficiados pelo regime militar. Ao mesmo tempo, as editoras pequenas foram prejudicadas por não receberem as mesmas facilidades e, em alguns casos, sofrerem perseguição política.
Desde o golpe de 1964, livros e editores foram censurados pelo poder ditatorial. Apenas dois dias depois do golpe, o governo fechou o Editorial Vitória, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), por considerá-lo “o maior centro de difusão de obras marxistas no Brasil”. Esta e outras ações repressivas começaram a instaurar no país uma cultura do medo, dentro da qual a censura era um elemento chave.
A ditadura organizou verdadeiras Listas de livros e autores proibidos. Em 1965, uma portaria do Ministério da justiça indicava uma lista com 33 “Livros de natureza subversiva”. Entre aqueles que deveriam ser aprendidos destacavam-se os volumes da coleção Cadernos do Povo Brasileiro, da Editora civilização Brasileira, obras de Karl Marx e de Friedrich Engels, de autores russos, de intelectuais brasileiros, além de uma obra da escritora Adelaide Carraro (Falência das elites). No ano seguinte, foi censurado o livro Torturas e Torturados, do Ex-deputado Márcio Moreira, que registrava casos de tortura ocorridos entre 1964 e 1966
Em 1965, o editor Ênio Silvera, proprietário da editora civilização Brasileira e militante do PCB, foi preso para prestar depoimentos sobre suas atividades profissionais. Silveira posicionou-se contra a censura e sofreu consequências, visto que sua editora foi uma das mais perseguidas. Até mesmo o ditador Marechal Castello Branco questionou a necessidade da prisão de Silveira. “Por que a prisão de Ênio? Só para depor?” a repercussão é contraria a nós (...). Isso nos rebaixa”. A divergência já indicava fissuras internas entre os militares. Mais tarde, em 1968, a livraria de Ênio Silveira no Rio de Janeiro foi alvo de um atentado à bomba.
Alguns escritores desafiaram a censura explicitamente, como Jorge Amado e Érico Veríssimo, dois dos mais populares escritores brasileiros. Eles reagiram à censura prévia declarando que “em nenhuma circunstância” mandariam seus originais aos censores: “preferimos parar de publicar no Brasil e só publicar no exterior”, disseram. A censura prévia foi formalmente instituída em 26 de janeiro de 1970, por meio do Decreto-lei nº 1.077.
Diante desse clima repressivo, muitas pessoas passaram a tomar precauções em relação aos livros que possuíam, uma vez que muitos deles passaram a ser vistos pela ditadura como “armas perigosas” de subversão. Muitas pessoas queimavam ou enterravam seus próprios livros considerados “comprometedores”, transformando em realidade as previsões da obra Fahrenheit 451, de Ray Bradubury. Outros espalharam seus livros entre os amigos que não possuíam nenhum envolvimento político, pensando que mais tarde, quando a censura enfraquecesse, iriam recuperá-los. “O fato é que muita gente perdeu bibliotecas inteiras com medo da perseguição”.
Os estudantes de Ciências Sociais, História, Filosofia, Geografia e Literatura encontraram dificuldades para acessar livros básicos para sua formação, proibidos pelo index de autores subversivos e, sempre que possível, tais textos eram lidos às escondidas. A militância de esquerda, por sua vez, sentia necessidade de ler e difundir livros estratégicos para as suas organizações, considerados clássicos do seu repertório político e cruciais para a formação de novos militantes. Para driblar a censura, tais organizações criaram métodos clandestinos de circulação de livros proibidos. Nas gráficas de grupos guerrilheiros, capítulos de livros eram impressos separadamente e disfarçados com capas insuspeitas de livros de receitas ou obras famosas. Como a tiragem era muito pequena, esses impressos circulavam clandestinamente de mão em mão. Um único exemplar podia ser lido por muitas pessoas, até que alguém os jogasse fora para escapar da repressão.
O medo tinha fundamento. Em julho de 1968, por exemplo, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) instaurou uma sindicância para investigar o arquiteto e cenógrafo Marcos Flaksman, que trabalhou em algumas peças de teatro consideradas subversivas e imorais, de Bertold Brecht a Plínio Marcos. O motivo? Ao desembarcar no aeroporto do Rio de Janeiro, vindo de Paris, trouxera em sua bagagem onze livros de “natureza subversiva”. Eram obras de autores, como Régis Debray, Che Guevara, Charles Bettelheim, Herbert Marcuse e Louis Althusser. Aliás, como assinalaram os próprios policiais, a maior parte das obras já havia sido traduzida no Brasil. A sindicância não deu em nada, mas serviu como intimidação política.
Livros também foram usados como “provas” contra pessoas acusadas de subversão. Foi o que aconteceu com Francisco Gomes, um ativista de Sorocaba (SP) processado com base na Lei de Segurança Nacional em 1970 por pertencer à Ação Libertadora Nacional (ALN). Ele foi condenado e os livros apreendidos em sua casa foram o primeiro item destacado entre as “provas” da sua subversão.
Mesmo vigiados e perseguidos, os opositores do regime encontraram brechas para denunciar, por meio dos livros, a situação vivida no país. Foi o caso da obra Pau de Arara: La violence militaire au Brésil, publicado na França, em 1971, pela Editora François Maspero. Organizado pelos jornalistas Bernardo Kucinski e Ítalo Tronca, a partir de uma ideia de outro jornalista, Luiz Eduardo Merlino, o livro era uma denúncia do uso da tortura pelo governo brasileiro para combater seus oponentes.
Tragicamente, Merlino foi morto sob tortura pela repressão antes da obra estar impressa. Pau de Arara foi censurado no Brasil no mesmo ano de seu lançamento na França e só foi editado no país em 2013.
Conheça os três escritores mais censurados da época:
Cassandra Rios
Ninguém foi mais perseguida pelos censores da ditadura militar brasileira (1964 - 85) do que Cassandra Rios, escritora recordista em vetos durante o regime, com 36 dos seus 50 livros publicados censurados durante a vida - fora algumas edições clandestinas. "Cassandra Rios incomodou os militares por várias razões. A principal delas é o conteúdo erótico de seus livros, contrário a 'moral e aos bons costumes', como se dizia na época", explica Rodolfo Londero, professor da Universidade Estadual de Londrina e autor do livro Pornografia e censura: Adelaide Carraro, Cassandra Rios e o sistema literário brasileiro nos anos 1970
Dias Gomes
“Subversivo” era como a ditadura via um dos maiores dramaturgos brasileiros, segundo documentos oficiais. A perseguição a Dias Gomes nos tempos da ditadura é narrada no livro Herói Mutilado, lançado pela pesquisadora Laura Mattos em 2019. A novela Roque Santeiro, da Rede Globo foi censurada em 1975. Por meio de grampos telefônicos, os militares descobriram que a trama se baseava em uma peça de teatro que já havia sido proibida, ou seja, a novela proíbe uma peça que já estava proibida. Apenas em 1985 a novela foi lançada, com somente o ator Lima Duarte representando o elenco original.
Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues também foi um autor amplamente censurado pela ditadura militar. Um dos casos mais conhecidos foi o do livro O Casamento, um dos primeiros livros a ser censurado durante o regime, ainda em 1966, quando a repressão não era intensa. A obra foi censurada tendo proibida pelo Ministro da Justiça de então a comercialização e a impressão da obra, inclusive com a atuação de agentes do DOPS recolhendo exemplares em livrarias de diferentes estados. A obra foi considerada subversiva, indecorosa e uma afronta as famílias brasileiras. A narrativa aborda a história do casamento de Glorinha e Teófilo, em que o médico da família conta ao pai da noiva que viu seu futuro genro beijando outro homem.
O fim da censura foi lento e gradual. Em 1985, o Ministro da Justiça do governo de José Sarney, Fernando Lyra, anunciou o fim da censura política, ao mesmo tempo em que preservou a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Foi seu sucessor no ministério, o senador Paulo Brossard, que em 1987 começou de fato a desmontar a estrutura institucional da censura. No entanto, foram mantidas as estruturas censoras em casos ligados a “moral e pornografia”. Somente com a Constituição de 1988 a censura foi legalmente extinta.
• Edição por Luis Augusto do Carmo
• Revisão por Luis Augusto do Carmo
• Matéria por Luis Augusto do Carmo
Fontes:
• Memórias da ditadura
• Gov.br
• Entrevista com Dr.Dráuzio Varela
Essa matéria foi produzida pelo jornalista Luis Augusto do Carmo
Natural de Gravatá, agreste pernambucano, ator, produtor cultural e escritor. Escreve versos desde a infância, influenciado pela família, mas entrou de cabeça mesmo na literatura quando largou a faculdade de ciências contábeis e começou a frequentar os saraus. Hoje ele se dedica a escrever seus textos e a produzir eventos culturais na região, preservando espaços de cultura de resistência.
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